Um amigo me presenteou com este livro, em meio tira-gostos e cerveja, no Bar Frango Assado - tradicional boteco da Serrinha, bairro da periferia de Fortaleza. Não se agradou muito da leitura. Eu, pelo contrário, encantei-me com cada palavra e acabei por me tornar fã do autor.
Escrevi esta resenha em maio 2018. Na época, ainda estava professor do Instituto Federal de Pernambuco e tinha a intenção de reunir várias resenhas sobre arte preta numa compilação a ser publicada pela Pró-Reitoria de Extensão da mesma instituição. Acabei me envolvendo em outros projetos e a publicação não rolou. Este texto tem circulado por algumas páginas, blogs e redes sociais, desde então - sempre uso nos cursos que ministro sobre Literatura Haitiana, por exemplo. Tanto afeto investido não poderia ser abandonado tão fácil. De forma que imaginei que seria perfeito publicá-lo como das primeiras postagens do recém-inaugurado blog do canal.
Escrevi esta resenha em maio 2018. Na época, ainda estava professor do Instituto Federal de Pernambuco e tinha a intenção de reunir várias resenhas sobre arte preta numa compilação a ser publicada pela Pró-Reitoria de Extensão da mesma instituição. Acabei me envolvendo em outros projetos e a publicação não rolou. Este texto tem circulado por algumas páginas, blogs e redes sociais, desde então - sempre uso nos cursos que ministro sobre Literatura Haitiana, por exemplo. Tanto afeto investido não poderia ser abandonado tão fácil. De forma que imaginei que seria perfeito publicá-lo como das primeiras postagens do recém-inaugurado blog do canal.
RESENHA: LAFERRIÈRE, D. Como fazer amor com um negro sem se cansar. Tradução e Heloísa Moreira e Constança Vigneron. 3ª. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. ISBN 978-85-7326-495-1. Tradução de: Comment faire l'amour avec un nègre sans se fatiguer.
Dany Laferrière nasceu em 13 de abril de 1953, em Porto Príncipe, sob o nome de batismo de Windsor Klébert Laferrière. O pai, de mesmo nome, tinha sido um político proeminente durante o período democrático que antecedeu à ditadura do “Papa Doc” - alcunha pela qual ficou conhecido François Duvalier. Logo que se instaura o regime ditatorial (ano de 1959), o pai é posto em exílio e a mãe, temendo represálias à família, leva o garoto para o povoado de Petit-Goâve, onde permanecerá aos cuidados da avó até a idade de onze anos. Volta a Porto Príncipe, onde termina o ensino médio e, aos 19 anos, torna-se cronista da revista “Le Petit Samedi” e colaborador na rádio Haiti-Inter, tradicional centro da resistência democrática. O ano de 1976 lhe foi particularmente duro pois – durante a ditadura de Jean-Claude Duvalier, o “Baby Doc” - em 1º. de junho, o jornalista Gasner Raymond, seu amigo, é assassinado pelos Tontons Macoute (milícia paramilitar das ditaduras Duvalier), que também lhe juram de morte. Laferrière é obrigado a tomar o mesmo destino do pai partir do Haiti para o exílio. Instala-se então em Montreal, “capital” do “Canadá Francês”, onde trabalhou num curtume e em várias emissoras de TV – como cronista e homem do tempo – sem nunca abandonar a paixão pela escrita. Em 1985, consegue publicar seu romance de estreia: Comment faire l'amour avec un nègre sans se fatiguer, o primeiro de uma sequência de dez livros que chamou, ao final, “autobiografia americana”.
O livro narra a vida de dois imigrantes da Costa do Marfim que tentam sobreviver no centro de Montreal, no início dos anos 80. Seu eu-literário se materializa em Velho, um jovem escritor que tem como mais fiel companhia sua Remington 22, ao lado de quem sonha, um dia, despontar para o sucesso. Seu excêntrico companheiro de quarto é Buba, um muçulmano, vegetariano, aficcionado por jazz, Psicanálise e por construir teorias mirabolantes – numa ela, Sigmund Freud criou o jazz quando esteve nos Estados Unidos e aprendeu a tocar trompete com um músico tuberculoso do Harlem. Tal episódio estaria codificado nas entrelinhas de “Totem e Tabu”, segundo Buba. A crueza e a desesperança de sua situação – que tensiona os limites da sobrevivência física – é denunciada já no primeiro capítulo, quando da descrição do apartamento que dividem: “Estamos sufocando, neste verão, encurralados entre o Foutaine de Johannie (um restaurante nojento frequentado por marginais) e um minúsculo bar de topless na Saint-Denis nº. 3.670, e frente para a rua Cherrier. Trata-se de uma abjeta pocilga com banheiro que o zelador empurrou para o Buba como se fosse um quarto e sala, por 120 dólares ao mês. Moramos no terceiro andar. Um quarto minúsculo dividido em dois por um biombo japonês horrível com grandes pássaros estilizados. Uma geladeira resfolegante, como se a gente morasse no andar de cima de uma estação de trem. Pregadas na parede, Coelhinhas da Playboy que, quando chegamos, tivemos que tirar para evitar o suicídio a que esse tipo de coisa leva inevitavelmente. Um fogão com as bocas tão geladas quanto os bicos dos peitos e uma bruxa voando num frio de quarenta graus abaixo de zero. De brinde, a cruz do Mont Royal bem no meio da nossa janela” (p. 11). O cenário se completa com as moças brancas da classe média quebequense que visitam a modesta quitinete para gozar da companhia e dos préstimos sexuais dos protagonistas. Estas sempre ganham de Velho um apelido precedido de “Miz” - Miz Literatura, Miz Laranja Mecânica, Miz Suicida… Laferrière descreve com especial detalhes todo o espanto e a fetichização com que os olhos brancos pousam sobre o corpo do negro. Parte dessa exotização vem de graça nos títulos de alguns capítulos - “O Negro é do reino vegetal” (cap. 4), “Os Negros têm sede” (cap. 27). A outra parte vem em golpes – a exemplo do capítulo 2, quando a colonização ocidental [do diferente] nos é apresentada numa miríades de cores, uma imensa paleta de pigmentos descartáveis, prontos a serem apropriados por mãos brancas conforme a moda vigente: “O cassino das transas. Nada a acrescentar. Vermelho, Negro, Amarelo. Negro, Amarelo, Vermelho. Amarelo, Vermelho, Negro. A roleta do tempo ocidental” (p. 19). Aqui nos faz trombar com o sentido dúbio do título escolhido por ele: a expressão “se fatiguer” pode ser usada tanto para descrever exaustão (o negro que, dada sua voracidade sexual(Sic), deixa a parceria branca em frangalhos) quanto tédio (o negro que sexualmente só consegue prover um sexo aborrecido(Sic), sem muitas novidades). O texto como um todo é profundamente autobiográfico – característica marcante de sua obra – e eivado de intertextualidades com outros textos, já consagrados no ocidente… Podemos apreciar esta, no estilo bukowiskiano da ironia que trespassa todos os capítulos, na epígrafe que antecede o livro - “O negro é um móvel”, citação do primeiro artigo do Code Noir, conjunto e textos jurídicos promulgados por Luis XIV, em 1685, que regulamentava a vida dos negros escravizados nas colônias francesas – ou mesmo no título do último capítulo: “a gente não nasce Negro, a gente se torna um” (referência à obra “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir). Além disso, o texto traz uma estética musical fascinante. Poderia se dizer que é um livro com trilha sonora – lembro aqui da fala de agradecimento do primeiro amigo a quem presenteei com uma cópia do livro “Muito obrigado por preencher meus dias com Charlie Parker, Miles Davis e Coltrane” - inclusive na linguagem utilizada pelo autor que, por vezes, é propositalmente musicológica. A exemplo de como descreve o fim orgasmo de Miz Sophisticated Lady: “Vou sair desse corpo inerte, incomível, indiferente. Tiro lentamente. Que grito é esse? De onde vem? É o grito da própria vagina. Ouço sua voz: 'Vem vem vem vem vem vem vem vem vem vemmmmmmm'. Grito tenso, uma oitava acima, agudo, prolongado, inumano, ora allegro, ora andante, ora pianissimo, grito interminável, inconsolável, eletrônico, assexuado, lembrando-me modulação o grito primal vindo do quarto de Belzebu, lá em cima” (p. 71). Em suma, “Como fazer amor com um negro sem se cansar” é um ensaio sobre a tensão entre cultura de origem e cultura de inserção. Pronta a ser degustada por amantes do jazz, por qualquer sujeito que tenha sentido a solidão de imigrar ou mesmo por aqueles e aquelas que simplesmente apreciam literatura de qualidade.
O livro narra a vida de dois imigrantes da Costa do Marfim que tentam sobreviver no centro de Montreal, no início dos anos 80. Seu eu-literário se materializa em Velho, um jovem escritor que tem como mais fiel companhia sua Remington 22, ao lado de quem sonha, um dia, despontar para o sucesso. Seu excêntrico companheiro de quarto é Buba, um muçulmano, vegetariano, aficcionado por jazz, Psicanálise e por construir teorias mirabolantes – numa ela, Sigmund Freud criou o jazz quando esteve nos Estados Unidos e aprendeu a tocar trompete com um músico tuberculoso do Harlem. Tal episódio estaria codificado nas entrelinhas de “Totem e Tabu”, segundo Buba. A crueza e a desesperança de sua situação – que tensiona os limites da sobrevivência física – é denunciada já no primeiro capítulo, quando da descrição do apartamento que dividem: “Estamos sufocando, neste verão, encurralados entre o Foutaine de Johannie (um restaurante nojento frequentado por marginais) e um minúsculo bar de topless na Saint-Denis nº. 3.670, e frente para a rua Cherrier. Trata-se de uma abjeta pocilga com banheiro que o zelador empurrou para o Buba como se fosse um quarto e sala, por 120 dólares ao mês. Moramos no terceiro andar. Um quarto minúsculo dividido em dois por um biombo japonês horrível com grandes pássaros estilizados. Uma geladeira resfolegante, como se a gente morasse no andar de cima de uma estação de trem. Pregadas na parede, Coelhinhas da Playboy que, quando chegamos, tivemos que tirar para evitar o suicídio a que esse tipo de coisa leva inevitavelmente. Um fogão com as bocas tão geladas quanto os bicos dos peitos e uma bruxa voando num frio de quarenta graus abaixo de zero. De brinde, a cruz do Mont Royal bem no meio da nossa janela” (p. 11). O cenário se completa com as moças brancas da classe média quebequense que visitam a modesta quitinete para gozar da companhia e dos préstimos sexuais dos protagonistas. Estas sempre ganham de Velho um apelido precedido de “Miz” - Miz Literatura, Miz Laranja Mecânica, Miz Suicida… Laferrière descreve com especial detalhes todo o espanto e a fetichização com que os olhos brancos pousam sobre o corpo do negro. Parte dessa exotização vem de graça nos títulos de alguns capítulos - “O Negro é do reino vegetal” (cap. 4), “Os Negros têm sede” (cap. 27). A outra parte vem em golpes – a exemplo do capítulo 2, quando a colonização ocidental [do diferente] nos é apresentada numa miríades de cores, uma imensa paleta de pigmentos descartáveis, prontos a serem apropriados por mãos brancas conforme a moda vigente: “O cassino das transas. Nada a acrescentar. Vermelho, Negro, Amarelo. Negro, Amarelo, Vermelho. Amarelo, Vermelho, Negro. A roleta do tempo ocidental” (p. 19). Aqui nos faz trombar com o sentido dúbio do título escolhido por ele: a expressão “se fatiguer” pode ser usada tanto para descrever exaustão (o negro que, dada sua voracidade sexual(Sic), deixa a parceria branca em frangalhos) quanto tédio (o negro que sexualmente só consegue prover um sexo aborrecido(Sic), sem muitas novidades). O texto como um todo é profundamente autobiográfico – característica marcante de sua obra – e eivado de intertextualidades com outros textos, já consagrados no ocidente… Podemos apreciar esta, no estilo bukowiskiano da ironia que trespassa todos os capítulos, na epígrafe que antecede o livro - “O negro é um móvel”, citação do primeiro artigo do Code Noir, conjunto e textos jurídicos promulgados por Luis XIV, em 1685, que regulamentava a vida dos negros escravizados nas colônias francesas – ou mesmo no título do último capítulo: “a gente não nasce Negro, a gente se torna um” (referência à obra “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir). Além disso, o texto traz uma estética musical fascinante. Poderia se dizer que é um livro com trilha sonora – lembro aqui da fala de agradecimento do primeiro amigo a quem presenteei com uma cópia do livro “Muito obrigado por preencher meus dias com Charlie Parker, Miles Davis e Coltrane” - inclusive na linguagem utilizada pelo autor que, por vezes, é propositalmente musicológica. A exemplo de como descreve o fim orgasmo de Miz Sophisticated Lady: “Vou sair desse corpo inerte, incomível, indiferente. Tiro lentamente. Que grito é esse? De onde vem? É o grito da própria vagina. Ouço sua voz: 'Vem vem vem vem vem vem vem vem vem vemmmmmmm'. Grito tenso, uma oitava acima, agudo, prolongado, inumano, ora allegro, ora andante, ora pianissimo, grito interminável, inconsolável, eletrônico, assexuado, lembrando-me modulação o grito primal vindo do quarto de Belzebu, lá em cima” (p. 71). Em suma, “Como fazer amor com um negro sem se cansar” é um ensaio sobre a tensão entre cultura de origem e cultura de inserção. Pronta a ser degustada por amantes do jazz, por qualquer sujeito que tenha sentido a solidão de imigrar ou mesmo por aqueles e aquelas que simplesmente apreciam literatura de qualidade.
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