domingo, 20 de fevereiro de 2022

SUDIKA-MBAMBI





Vamos falar de Ngana Kimanaueze Kia Tumb'a Ndala, estimado por todos e pai de Nzuá di Kimanaueze.

A história começa pela ordem dada ao filho:

– Na Zuá, vai para Luana tratar da tua vida.

Ele respondeu:

– Agora mesmo, quando acabo de me casar?

– Ordeno-te que partas imediatamente!

O filho partiu, chegou a Luanda e tratou dos seus negócios. Entretanto, o Ma-Kishi saqueou a casa de seu pai. Quando regressou de Luanda, Na Zuá encontrou a casa vazia. Cheio de fome, não sabia como solucionar o problema. Resolveu ir para o campo e aí avistou uma mulher e chamou-a. Ela reconheceu-o e perguntou:

– De onde vens?

Sem responder, Na Zuá indagou:

– Que te aconteceu?

– Os Ma-Kishi arruinaram-nos.

Voltaram os dois a viver juntos, e quando o filho estava para nascer, a mulher ouviu no seu ventre uma voz que dizia:

– Mãe, eis a minha espada, a minha faca, a minha árvore da vida e o meu cajado. Fica tranquila que eu vou sair.

E saindo disse:

– Chamo-me Sudika-Mbambi. No chão apoio meu cajado e no firmamento[,] o antílope.

Novamente a mãe escutou a voz de outro filho.

– Mãe, eis a minha espada, a minha faca, o meu kilembe e o meu cajado. Fica tranquila, eu estou a chegar,

E, saindo, disse:

– Chamo-me Kabundungulu, da árvore de Takula. O meu cão alimenta-se de castanhas de cola e o meu kimbundu engole um boi.

O primogênito ainda acrescentou:

– Plantei o meu kilembe atrás da casa.

E perguntou:

– Mãe, o que te trouxe aqui?

A mãe, estranhando profundamente tudo isto, exclamou:

– Admira-se que um recém-nascido fale assim.

– Não te surpreendas, vais ver. Cortaremos as varas e construiremos casas para os nossos pais.

Agarraram nas espadas e entraram na mata. Sudika-Mbambi cortou uma estaca e assim ambos fizeram o transporte.

Finalmente chegaram e depositaram o fardo no chão. Cortaram a relva e começaram a construção.

Sudika-Mbambi levantou a viga e pouco tempo depois a casa ficou concluída. Atou uma corda, e depois todas as outras, ficando bem presas. Rapidamente a casa cobriu-se de colmo. Sudika-Mbambi finalmente disse:

– Entrem, pai e mãe, a casa está pronta!

E voltando-se para o irmão:

– Olha, mais novo, vou lutar contra os Ma-Kishi e tu, Kabundungulu, faz companhia aos nossos pais. Se, porém, vires o meu kilembe a murchar é porque morri no sítio para onde agora vou.

Sudika-Mbambi partiu e alcançou a estrada. Logo que ouviu um ruído, perguntou:

– Quem é?

Responderam-lhe:

– Sou eu, Kipalende, o que construiu uma casa na rocha.

Sudika-Mbambi disse:

– Anda comigo.

Puseram-se a caminho e novamente escutaram o mesmo ruído e a mesma pergunta. Como resposta obtiveram: 

– Sou eu, Kipalende, que recolho folhas de milho em Kalunga.

– Anda conosco.

E foram pela estrada fora.

Pela quarta vez (Sic), alguém disse:

– Sou eu, Kipalende, que posso estender a barba até Kalunga.

Também o chamaram e todos continuaram a caminhar. Mais adiante, uma quinta pessoa apareceu na outra margem do rio:

– Sou eu, Kijandala-Midi, que uma centena lavo a boca.

Sudika-Mbambi replicou:

[–] E eu, Sudika-Mbambi, ponho na terra o meu bastão e no firmamento[,] o antílope.

Ao ouvir estas palavras, Kijandala-Midi fugiu.

Chegaram ao meio da tarde, Sudika-Mbambi convocou os quatro Kipalendes:

 – Preparemo-nos e construamos uma casa  para combater o Ma-Kishi.

Foram em busca de estacas. O chefe cortou uma e as outras cortaram-se por si próprias. Ele transportou uma e o mesmo fizeram as demais sem ajuda de ninguém. Começaram a construção.

Sudika-Mbambi apanhou uma viga e entregou-a ao Kipelende que erguera uma casa na rocha. Ele recebeu-a e pôs-se a construir na rocha, mas sem firmeza. Parou. Recomeçou o trabalho e não continuou. E o chefe interrogou-o:

 – Não disseste que construirias na rocha? Por que desististe?

O chefe é quem executa a obra, finalmente.

Quando acabaram foram deitar-se.

Ao amanhecer, Sudika-Mbambi propôs:

 – Vamos combater os Ma-Kishi.

Deixou, porém, um Kipalende, o que era capaz de erguer dez clavas, e levou consigo os outros três. Encontrando os Ma-Kishi[,] fizeram fogo.

Ao mesmo tempo, em casa, onde ficara um Kipalende, apareceu uma mulher com uma neta. A velha, ao encarar com o Kipalende disse:

 –Vamos combater e se ganhares casarás com a minha neta.

Na luta, o Kipalende foi derrotado. A mulher apanhou uma pedra, deixou-a em cima do corpo do Kipalende e foi-se embora.

Sudika-Mbambi soube que o Kipalende estava derrubado com uma pedra em cima e preveniu os outros.

Eles não quiseram acreditar. Não podia ser verdade.

 – Se estamos tão longe, como é que consegues saber disso?

Ele confirmou o que disse. Então, cessaram o fogo e resolveram regressar.

Em casa encontraram o Kipalende debaixo da pedra, pelo que Sudika-Mbambi inisstiu:

 – Não tinha razão?

 – Realmente!

 Retiraram a pedra e perguntaram:

 – Como foi isto?

A vítima contou o que se tinha passado. E os companheiros disseram a rir:

 – Deixaste que uma velha te ganhasse!

Pouco depois foram deitar-se.

No dia seguinte, o chefe chamou os Kailundas para o combate, mas informou que o Kipalende devia ficar. Enquanto lutavam apareceu outra vez em casa a mulher e a neta e a proposta era a mesma. O Kipalende concordou e começaram a lutar. Outra vez abatido, ficou deitado com uma pedra em cima.

Sudika-Mbambi seguiu o combate, mas logo preveniu os companheiros do que se passara.

Vão para casa, salvam-no e perguntam-lhe o motivo de tudo aquilo. ELe contou a mesma história. Deitaram-se e na manhã seguinte tudo se passou como na véspera. E assim foi no outro dia, pela quarta vez, a mesma coisa.

Depois disso, não havendo mais nenhum Kipalende para substituto, Sudika-Mbambi disse:

 – Desde ontem só resta ao Ma-Kishi uma única aldeia. Portanto a situação já permite que vocês quatro Kipalendes avancem com armas e só eu fique.

Enquanto estavam a discutir, a tal mulher chegou a casa onde se encontrava Sudika-Mbambi e disse:

– Vamos lutar e se  me venceres casarás com a minha neta.

Desta vez ela foi derrotada e morta por Sudika-Mbambi, que ficou com a rapariga. Esta explicou:

– Hoje é que começo a viver, pois minha avó costumava encerrar-me numa casa de pedra para que eu não pudesse sair. Agora poderemos casar!

 Ele concordou.

Chegaram os Kipelendes satisfeitos com a vitória no conflito entre eles e os Ma-Kishi. Sudika-Mbambi também se regozijou pelo sucesso final e assim continuou a vida para todos.

Entretanto, os quatro Kipalendes tramaram uma conspiração:

– Sudika-Mbambi, apesar de tão novo, conseguiu ultrapassar-nos, portanto vamos matá-lo.

Cavaram um buraco no chão e estenderam por cima uma esteira. Depois chamaram-no:

– Senta aqui!

Ele sentou-se e caiu no buraco. Deixaram-no inteiramente coberto de areia e partiram à procura da rapariga. Porém, quando chegaram a casa encontraram o irmão da vítima – o Kabundungulu. Esse saiu e foi ao quintal e, ao olhar para a árvore do seu irmão mais velho, verificou que ela estava a murchar. Raciocinou: "Onde o meu irmão estiver vai morrer". Regou a árvore e ela reverdeceu.

Quando Sudika-Mbambi foi lançado para dentro do abismo descobriu aí uma saída e pôs-se a caminho.

Encontrou uma mulher que trabalhava com uma enxada, mas movimentando-a somente com o tronco, pois a tarde inferior ficava à sombra.

Sudika-Mbambi cumprimentou-a amavelmente e recebeu igual saudação. Pediu-lhe para lhe indicar a caminho.

– Meu filho, pega na enxada e ajuda-me. Se o fizeres satisfarei o teu pedido.

Fez a vontade à mulher e ela, como agradecimento, indicou-lhe o caminho.

– Segue a estrada mais estreita e não tomes a larga porque podes perder-te. Ao aproximares-te de Kalunga-ngombe não te esqueças de levar um jarro de pimenta vermelha e outro de sabedoria.

O jovem agradeceu e, seguindo as instruções que lhe foram dadas, chegou a Kalunga-ngombe.

Apareceu aí um cão que se lhe atirou às pernas, mas bastou um sinal para o cão deixar de ladrar. Entrou em casa quando o sol estava já a desaparecer.

Depois das saudações, declarou:

– Venho casar com a filha de Kalunga-ngombe.

Este respondeu:

– Casarás com a minha filha mas só se me apresentares um jarro de pimenta vermelha e outro de sabedoria.

À tarde, quando preparavam a comida para Sudika-Mbambi, ele descobriu que lhe haviam destinado um galo e um caldo de farinha. Retirou o galo e escondeu-o debaixo da cama.

Durante a noite ouviu alguém dizer:

– Quem matou o galo de Kalunga-ngombe?

O galo gritou debaixo da cama.

– Kokolokué!

Mal amanheceu o dia, Sudika-Mbambi foi ter com Kalunga-ngombe:

– Dá-me agora a tua filha.

– Foi raptada por Kinioka kia Tumba. Vai e salva-a!

Partiu e chegando às terras de Kinioka perguntou:

– Pra onde foi Kinioka?

A mulher deste informou:

 – Foi fazer fogo.

Enquanto Sudika-Mbambi esperava, avistou as formigas. Mal as viu, pisou-as. Depois apareceram formigas vermelhas, que tiveram a mesma sorte, assim como abelhas e vespas.

Veio um chefe de Kinioka, que Sudika degolou, fazendo o mesmo a outros dois. Cortou a palmeira, a bananeira e a cabeça do cão de Kinioka. Morto este, Sudika-Mbambi entrou em casa dele. Encontrou a filha de Kalunga-ngombe e disse-lhe:

– Vamos! O teu pai mandou-me buscar-te.

Voltando a Kalunga-ngombe anunciou:

– Eis a tua filha!

Em resposta, recebeu uma intimação:

– Vê se podes matar Kimbiji kia Kalenda a Ngandu, que costuma apoderar-se dos meus porcos e cabras.

Sudika-Mbambi pediu:

– Arranja-me um leitão novo.

Logo que lho deram, colocou-o num anzol e atirou-o à água. Kimbiji veio ao encontro da isca e engoliu o porco. Sudika-Mbambi começou a puxar, mas escorregou e caiu dentro da água, sendo também engolindo pelo Kimbiji kia Kalenda a Ngandu.

O Kabundungulu, o irmão mais novo, que estava em casa, foi ao quintal ver o Kilembe. Notando-o seco exclamou:

– O meu irmão está morto! Procurarei seguir seu caminho.

Tomando a estrada, alcançou a casa do irmão.

Encontrou aí os Kipalendes e perguntou-lhes:

– Que é feito do meu irmão?

– Não sabemos.

– Por que o matastes?

Descobriu a cova. Feito isto, Kabundungulu entrou e continuou na mesma estrada em que passara seu irmão.

Encontrou-se também com a mulher que trabalhava com a enxada com a parte superior do corpo, deixando a outra à sombra. Pediu-lhe:

– Ensina-me o caminho que meu irmão trilhou.

Ela ensinou-lhe.

Foi ter com Kalunga-ngombe:

– Onde está meu irmão?

– Foi engolido por Kimbiji.

– Então dá-me um porco.

Pegou nele, pô-lo num anzol e lançou-o à água.

Kimbiji engoliu o anzol e Kabundungulu chamou várias pessoas para o ajudarem a pescar Kimbiji. Depois de muito trabalho sempre o conseguiram.

Em terra Kabundungulu com uma faca abriu o Kimbiji. Encontrando os ossos de seu irmão, reuniu-os e disse:

– Levanta-te!

Sudika-Mabambi pôs-se em movimento e ouviu o seu irmão:

– Vamos embora. Na Kalunga-ngombe vai dar-te a filha.

Ambos regressaram ao lugar onde fora enterrado Sudika-Mbambi. A terra estalou. Subiram e apareceram os quatro Kipalendes, a quem expulsaram da casa.

Ficaram a viver independentes.

Um dia, o irmão mais novo disse ao mais velho:

– Tens duas mulheres, dá-me uma.

– Não, não poderás desposar uma mulher minha.

Enquanto Sudika-Mbambi foi caçar, o outro penetrou em casa e procurou aproximar-se das mulheres.

Aconteceu que Sudika interrompeu a caça e chegou logo a seguir em casa. Foi logo avisado por uma das suas mulheres:

– O teu irmão está aqui, pretendendo seduzir-nos.

Sudika-Mbambi ficou muito zangado e discutiu com o irmão. Discutiu, lutaram e acabaram por se querer matar um ao outro. Nenhum conseguiu fazê-lo, pois guerrearam-se com espadas que não cortavam.

O esforço fatigou-os até que Sudika-Mbambi firmando o cajado em terra e o antílope no firmamento foi para Leste. E o Kabundungulu, cujo cão comia palmeira e o seu kimbunlu devorava touros, dirigiu-se para Oeste.

Os irmãos separaram-se por causa de mulheres. Daí se diz que em tempestades quando troveja é o mais velho que foi para o Leste e o eco do trovão, que se atribui ao mais novo, para o Oeste.

FONTE: Contos Populares de Angola - Folclore Quimbundo - Viale Moutinho (Org.) - Landy Editora


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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Resenha Preta: "Como fazer amor com um negro sem se cansar" - Dany Laferrière

     




    Um amigo me presenteou com este livro, em meio tira-gostos e cerveja, no Bar Frango Assado - tradicional boteco da Serrinha, bairro da periferia de Fortaleza. Não se agradou muito da leitura. Eu, pelo contrário, encantei-me com cada palavra e acabei por me tornar fã do autor.
    Escrevi esta resenha em maio 2018. Na época, ainda estava professor do Instituto Federal de Pernambuco e tinha a intenção de reunir várias resenhas sobre arte preta numa compilação a ser publicada pela Pró-Reitoria de Extensão da mesma instituição. Acabei me envolvendo em outros projetos e a publicação não rolou. Este texto tem circulado por algumas páginas, blogs e redes sociais, desde então - sempre uso nos cursos que ministro sobre Literatura Haitiana, por exemplo. Tanto afeto investido não poderia ser abandonado tão fácil. De forma que imaginei que seria perfeito publicá-lo como das primeiras postagens do recém-inaugurado blog do canal.

RESENHA: LAFERRIÈRE, D. Como fazer amor com um negro sem se cansar. Tradução e Heloísa Moreira e Constança Vigneron. 3ª. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. ISBN 978-85-7326-495-1. Tradução de: Comment faire l'amour avec un nègre sans se fatiguer.

    Dany Laferrière nasceu em 13 de abril de 1953, em Porto Príncipe, sob o nome de batismo de Windsor Klébert  Laferrière. O pai, de mesmo nome, tinha sido um político proeminente durante o período democrático que antecedeu à ditadura do “Papa Doc” - alcunha pela qual ficou conhecido François Duvalier. Logo que se instaura o regime ditatorial (ano de 1959), o pai é posto em exílio e a mãe, temendo represálias à família, leva o garoto para o povoado de Petit-Goâve, onde permanecerá aos cuidados da avó até a idade de onze anos. Volta a Porto Príncipe, onde termina o ensino médio e, aos 19 anos, torna-se cronista da revista “Le Petit Samedi” e colaborador na rádio Haiti-Inter, tradicional centro da resistência democrática. O ano de 1976 lhe foi particularmente duro pois – durante a ditadura de Jean-Claude Duvalier, o “Baby Doc” - em 1º. de junho, o jornalista Gasner Raymond, seu amigo, é assassinado pelos Tontons Macoute (milícia paramilitar das ditaduras Duvalier), que também lhe juram de morte. Laferrière é obrigado a tomar o mesmo destino do pai partir do Haiti para o exílio. Instala-se então em Montreal, “capital” do “Canadá Francês”, onde trabalhou num curtume e em várias emissoras de TV – como cronista e homem do tempo – sem nunca abandonar a paixão pela escrita. Em 1985, consegue publicar seu romance de estreia: Comment faire l'amour avec un nègre sans se fatiguer, o primeiro de uma sequência de dez livros que chamou, ao final, “autobiografia americana”.
    O livro narra a vida de dois imigrantes da Costa do Marfim que tentam sobreviver no centro de Montreal, no início dos anos 80. Seu eu-literário se materializa em Velho, um jovem escritor que tem como mais fiel companhia sua Remington 22, ao lado de quem sonha, um dia, despontar para o sucesso. Seu excêntrico companheiro de quarto é Buba, um muçulmano, vegetariano, aficcionado por jazz, Psicanálise e por construir teorias mirabolantes – numa ela, Sigmund Freud criou o jazz quando esteve nos Estados Unidos e aprendeu a tocar trompete com um músico tuberculoso do Harlem. Tal episódio estaria codificado nas entrelinhas de “Totem e Tabu”, segundo Buba. A crueza e a desesperança de sua situação – que tensiona os limites da sobrevivência física – é denunciada já no primeiro capítulo, quando da descrição do apartamento que dividem: “Estamos sufocando, neste verão, encurralados entre o Foutaine de Johannie (um restaurante nojento frequentado por marginais) e um minúsculo bar de topless na Saint-Denis nº. 3.670, e frente para a rua Cherrier. Trata-se de uma abjeta pocilga com banheiro que o zelador empurrou para o Buba como se fosse um quarto e sala, por 120 dólares ao mês. Moramos no terceiro andar. Um quarto minúsculo dividido em dois por um biombo japonês horrível com grandes pássaros estilizados. Uma geladeira resfolegante, como se a gente morasse no andar de cima de uma estação de trem. Pregadas na parede, Coelhinhas da Playboy que, quando chegamos, tivemos que tirar para evitar o suicídio a que esse tipo de coisa leva inevitavelmente. Um fogão com as bocas tão geladas quanto os bicos dos peitos e uma bruxa voando num frio de quarenta graus abaixo de zero. De brinde, a cruz do Mont Royal bem no meio da nossa janela” (p. 11). O cenário se completa com as moças brancas da classe média quebequense que visitam a modesta quitinete para gozar da companhia e dos préstimos sexuais dos protagonistas. Estas sempre ganham de Velho um apelido precedido de “Miz” - Miz Literatura, Miz Laranja Mecânica, Miz Suicida… Laferrière descreve com especial detalhes todo o espanto e a fetichização com que os olhos brancos pousam sobre o corpo do negro. Parte dessa exotização vem de graça nos títulos de alguns capítulos - “O Negro é do reino vegetal” (cap. 4), “Os Negros têm sede” (cap. 27). A outra parte vem em golpes – a exemplo do capítulo 2, quando a colonização ocidental [do diferente] nos é apresentada numa miríades de cores, uma imensa paleta de pigmentos descartáveis, prontos a serem apropriados por mãos brancas conforme a moda vigente: “O cassino das transas. Nada a acrescentar. Vermelho, Negro, Amarelo. Negro, Amarelo, Vermelho. Amarelo, Vermelho, Negro. A roleta do tempo ocidental” (p. 19). Aqui nos faz trombar com o sentido dúbio do título escolhido por ele: a expressão “se fatiguer” pode ser usada tanto para descrever exaustão (o negro que, dada sua voracidade sexual(Sic), deixa a parceria branca em frangalhos) quanto tédio (o negro que sexualmente só consegue prover um sexo aborrecido(Sic), sem muitas novidades). O texto como um todo é profundamente autobiográfico – característica marcante de sua obra – e eivado de intertextualidades com outros textos, já consagrados no ocidente… Podemos apreciar esta, no estilo bukowiskiano da ironia que trespassa todos os capítulos, na epígrafe que antecede o livro - “O negro é um móvel”, citação do primeiro artigo do Code Noir, conjunto e textos jurídicos promulgados por Luis XIV, em 1685, que regulamentava a vida dos negros escravizados nas colônias francesas – ou mesmo no título do último capítulo: “a gente não nasce Negro, a gente se torna um” (referência à obra “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir). Além disso, o texto traz uma estética musical fascinante. Poderia se dizer que é um livro com trilha sonora – lembro aqui da fala de agradecimento do primeiro amigo a quem presenteei com uma cópia do livro “Muito obrigado por preencher meus dias com Charlie Parker, Miles Davis e Coltrane” - inclusive na linguagem utilizada pelo autor que, por vezes, é propositalmente musicológica. A exemplo de como descreve o fim orgasmo de Miz Sophisticated Lady: “Vou sair desse corpo inerte, incomível, indiferente. Tiro lentamente. Que grito é esse? De onde vem? É o grito da própria vagina. Ouço sua voz: 'Vem vem vem vem vem vem vem vem vem vemmmmmmm'. Grito tenso, uma oitava acima, agudo, prolongado, inumano, ora allegro, ora andante, ora pianissimo, grito interminável, inconsolável, eletrônico, assexuado, lembrando-me modulação o grito primal vindo do quarto de Belzebu, lá em cima” (p. 71). Em suma, “Como fazer amor com um negro sem se cansar” é um ensaio sobre a tensão entre cultura de origem e cultura de inserção. Pronta a ser degustada por amantes do jazz, por qualquer sujeito que tenha sentido a solidão de imigrar ou mesmo por aqueles e aquelas que simplesmente apreciam literatura de qualidade.


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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Inauguração do blog

    É com muita satisfação que anunciamos a inauguração de mais este espaço como braço do Canal Omoiji. Aqui serão publicados textos maiores, que extrapolarem os 2200 caracteres permitidos em publicações no Instagram. Inicialmente, nosso foco será apresentar resenhas de obras literárias, visuais e musicais, de compositoras/es negras/os, com recomendações atualizadas sobre artistas que nossa equipe de comentaristas mais aprecia. Mais adiante, expandiremos nosso espoco para apresentar pratos da culinária africana, programações turísticas (tanto da Diáspora, quanto no Continente Mãe) e manifestações culturais pretas em geral. Fiquem ligadas/os!


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